História Curta Sobre o Fluxo da Bondade

Desconcertante

Ontem fomos ao jardim zoológico.
Eu, esposa e duas crianças… de trem. No verão infernal do Rio de Janeiro.
Fiquei muito contente porque o ar-condicionado do trem estava funcionando, mas o que me encantou foi a educação de quem, ao me ver com o menino de um ano no colo… cedeu o lugar!

Sim, eram quase 10 horas da manhã e fomos confortavelmente sentados: não tenho uma vírgula a reclamar do serviço prestado pela Supervia, tanto na ida quanto na volta… inclusive um episódio desconcertante ocorreu dentro do trem, bem no final da aventura, e teve consequências didáticas que, espero, fiquem marcadas em meu coração para sempre.
Vou contar…

O PASSEIO FOI SÓ O COMEÇO…

E não posso negar que foi um dia maravilhoso, da mesma forma que se eu dissesse que não estou sofrendo por conta da atual fase de meu filho seria mentira: ele é inteligente, tem uma memória difícil de distrair e quando quer uma coisa grita como se não houvesse amanhã!
Esses gritos não só chamam a atenção de qualquer um que esteja a dois quilômetros como parece rasgar, através da amplificação dos aparelhos auditivos, bem no meio de meu cérebro: é verdadeiramente doloroso, extremamente desgastante e só me resta, enquanto tento conversar e educar, aguardar que ele avance para a próxima fase — atualmente estamos entre duas e três sílabas — de verbalização e comunicação.

Esse comportamento de gritar como se estivesse sendo eviscerado quando negamos algo que ele queira tem sido até um pouco vexatório e foi o que ocorreu ontem dentro do trem, após o passeio, pouco antes de desembarcarmos: não lembro bem o que ele queria, mas lembro que os gritos que ele deu chamaram a atenção de todos ao redor… e isso num daqueles trens que não tem nem divisão entre as composições.
(E, pelos meus cálculos, os gritos do menino devem ter alcançado uns cinco vagões de distância!!)
A coisa foi tão dramática e pungente que até um vendedor ofereceu um copo de guaraná para que o garoto parasse de gritar, mas nós, os pais, morrendo de vergonha, recusamos, afinal evitamos que beba açúcar e ele nem estava com sede… e aquele homem, com toda a sua generosidade, então pegou uma garrafa d’água e colocou, sem permitir devolução, nas mãos da criança bem no momento em que as portas se abriram e tivemos que desembarcar.

Descemos com mochilas, carrinho e crianças e ficamos ali, nos entreolhando, pois o trem já tinha cerrado as portas e partia, sem permitir que sequer tivéssemos tempo de alcançar a carteira para tentar pagar por aquela água…
Guardem essa informação que a história segue em frente.

A ABESTADA “BESTA SURDA”

Hoje pela manhã estava concentrado, absorto no silêncio das muitas ideias cinematográficas e legendárias que iam passando dentro da minha surdez profunda quando alguém conseguiu chamar minha atenção ao bater com algo metálico, provavelmente uma moeda, na madeira do portão entreaberto de minha garagem.
Um pouco assustado por ter ouvido algo e desconfortável por estar sem camisa e suando em bicas, fui olhar pela fresta e eram duas mulheres, uma bem idosa e outra mais jovem, que falaram alguma coisa que, ao contrário do primeiro som, não foi capaz de ultrapassar minha barreira de silêncio.

Expliquei que sou surdo e elas então, pedindo, fizeram sinal com o dedo indicador e articularam com perfeição: “UM RE-AL”!!
Incomodado por estar seminu e suado, constrangido por ter sido interrompido em minha desagradável tarefa e sequer considerando ir enlamear o chão de casa para procurar minha carteira, disse que não tinha e, meio contrariadas, elas foram embora.

O que vou contar a partir de agora não é para me engrandecer: nunca apresentei antes e nunca mais pretendo apresentar qualquer boa praticada por mim, principalmente por crer que quem tem de ver tais atos e recompensá-los, tudo em secreto, é somente Deus. Nem a minha esposa eu conto das coisas que às vezes faço!
Mas é que dessa vez foi algo bastante mais fora do comum…

Eu fui ali, lavando a garagem e lembrando da expressão no rosto daquelas mulheres… e me dando conta de que se estava ruim para mim ali, debaixo da sombra do telhado da garagem, deveria estar muito pior para elas andando apenas com suas sombrinhas para protegê-las desse sol devastador. Certamente elas não estariam fazendo tanto sacrifício para comprar cachaça…
Aí lembrei de ontem, quando um simples vendedor de trem entregou aquela garrafa d’água para uma criança que, na verdade, nem precisava… e meu coração quebrou: pensei nas aflições daquele homem andando e gritando pelos vagões dos trens, tendo que vender suas bebidas para poder sobreviver… e ainda assim foi gracioso de oferecer espontaneamente UM REAL (o preço da garrafa de água), com um sorriso e sem nem pensar muito se aquilo iria lhe fazer falta ou não ao final do dia!

Maldição: pelo menos o um real que não paguei na água de ontem eu tinha a obrigação de ter!
Que raio de ser humano estava sendo eu de nem ter lembrado disso e deixado aquelas mulheres ir embora, sob esse sol escaldante, para continuar pedindo por um valor tão pequeno?
Não que eu esteja esbanjando dinheiro, pois na verdade acabo sendo também nada mais que outro pedinte: as necessidades de consultas, remédios, conserto das próteses e até a terrível realidade de, de repente, precisar adquirir novas próteses se somaram às inadiáveis necessidades cotidianas e eu estou aqui, tentando vender camisas pela internet para reforçar a fraca aposentadoria que recebo por ter sido reformado com apenas 20 dos 30 anos de serviço que deveria cumprir… mas, que droga, um real eu tenho e, se pudesse… se tivesse recursos… minha vontade seria a de perguntar qual era a necessidade daquelas mulheres e atendê-la de uma vez!

Me dei conta de que Deus tinha acabado de me dar um tapa na cara: ontem me proporcionou uma gentileza e eu, absorto em mim mesmo, ia deixando de retribuir!
Corri, só de calção, peguei a carteira e as chaves do carro, orando para que ainda conseguisse encontrar aquelas duas pelas ruas: não conseguia entender como podia ter sido tão estúpido e ingrato!

Fui dirigindo e olhando para todos os lados, imaginando qual a rota que duas pessoas carentes fariam, procurando rua por rua e chorando num arrependimento desesperado, pedindo a Deus que não me tirasse a oportunidade de fazer algum bem àquelas pessoas… ninguém ia estar andando naquele sol e pedindo tão pouco de não estivesse em necessidades!
Meti a mão na carteira e descobri três notas, as únicas que tenho de hoje até o final do mês. Tenho, sim, fé, mas não seria prudente deixar meus filhos passar necessidade: no momento em que puxei duas cédulas, avistei a dupla andando no final da rua principal do bairro atrás do meu, prestes a virar uma esquina!

Acelerei e fui abrindo a janela até chegar ao lado delas que, com dignidade, sequer olharam para aquele automóvel que passou a escoltá-las. Vendo que não iriam olhar, resolvi então gritar:
— Ei! Eu estava lá atrás, lavando o quintal!
Aí elas olharam e, meio envergonhado e sem dar tempo para nenhuma reação, estendi a mão, coloquei as duas cédulas na mão da mais idosa e parti — principalmente porque, sem aparelhos, não seria capaz de escutar nada do que dissessem mesmo…
Pelo retrovisor pude vê-las olhando uma para outra e sorrindo: mudaram de direção, atravessando a rua e, sinceramente espero, indo solucionar suas necessidades.

Voltei pra casa chorando que nem bezerro desmamado, sentindo que Deus me deu um recado: quanto mais eu tiver, mais eu devo ajudar!
Para com essa mania de achar que as pessoas estão pedindo com finalidades desnecessárias e ajude àqueles que se expõem, que largam qualquer orgulho e, pela mais pura necessidade, saem para pedir, pois essa é a única forma de suprir suas mazelas.

Não vou vincular essa conclusão à minha fé cristã — principalmente por já ter visto muita gente que nem é cristã revelando um coração extremamente mais generoso que alguns lobos devoradores que se travestem, até, de pastores —, mas a lição é de que o bem tem, sim, um fluxo: este de hoje, por ter contado a vocês, posso não tê-lo reconhecido por Deus, mas meu incentivo à sua prática através desse texto há de proporcionar a muitos um bem ainda maior do que o pequeno valor que doei àquelas mulheres.

Encerro com um vídeo cuja música pode não ser acessível a muitos (como também não mais é para mim), mas que escutei na época quando ainda podia, tocou meu coração… e que hoje fez todo o sentido do mundo!
Espero que toque o seu também!

Um abraço.

Pode me ajudar compartilhando e curtindo?

Textos Sugeridos

  • rorschachbr disse:

    Interessante. Há algum tempo adotei a política de esmola zero. Como já comentei com você temos alguns aspectos em total oposição. Depois de ver todo o tipo de mentiras nas variadas conduções (ônibus, metrô e trem) inclusive com os mesmos pedintes atuando nas três decidi sequer escutar as estórias. Na Sexta-Feira escutei uma grávida pedinte no Centro falar que a vontade é de “meter a porrada” quando uma mulher fala NÃO. Sim, foram essas as palavras. Ande na Central do Brasil e tenha pena daqueles que diante de um NÃO se exaltam e já querem arrumar confusão…
    Acredito que você sentiu no coração mas de fato você não sabe que destino deram a sua “generosidade”. Não mudarei minha postura. E sem medo de te deixar chateado afirmo que aconselhar jovens casais a esperar para ter filhos não me parece ter base bíblica. E como já te falei se eu tivesse agido assim estaria muito ferrado. Seus textos sempre foram importantes na minha vida e ajudaram a entender que não preciso estar em uma empresa eclesiastica mas não existe uma fórmula única para todos….
    Meus filhos hoje são minhas flechas, já não estão na aljava e são minha única família, sem querer desmerecer alguns excelentes parentes que me ajudaram ao longo da vida. Sem esquecer dos amigos antigos e recentes que me apoiaram nas horas dificeis. Os cracudos já estão pedindo $$ na estrada e vamos fechar assim:
    Porque, quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também.

    2 Tessalonicenses 3:10

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