Assim que entramos na capela minha irmã logo percebeu que Cristo estava pregado na cruz… e para nós, especialmente naquele momento, era muito importante a reafirmação de que a cruz está vazia: sob esse símbolo jazia, como se apenas dormisse, o corpo de nossa mãe.
Ainda hoje é difícil explicar o que sentia naquele momento, pois minha saudade era de uma pessoa cuja personalidade veio, ao longo dos anos, sendo diluída por Alzheimer e Parkinson… e, razão de minha confusão, também sentia alívio pelo descanso, dela e nosso, após tanto tempo de luta, sofrimento e desgaste.
Naquela manhã de segunda-feira a primeira, e até então única, pessoa presente na capela era Maria, mãe de meu irmão Rogério e esposa de meu pai até seus últimos dias: o restante da família ainda demorou um pouco para chegar e, na verdade, eu estava funcionando num “modo piloto automático” e — revivendo os procedimentos nas tantas mortes que testemunhei — fui atuando maquinalmente na área administrativa daquele momento amargo, pois o surgimento de algum constrangimento no processo do sepultamento só tornaria ainda pior a dor da perda.
Mamãe partira deste mundo no dia anterior, deitada em sua própria cama, na sala da casa que eu e minha irmã conseguimos comprar justamente para fugir do aluguel que nos escravizara a vida inteira e poder proporcionar alguma tranquilidade, ao menos de moradia, nos dias de sua velhice: até tentamos ativar o SAMU para que houvesse algum acompanhamento médico especializado nesse momento, mas a despeito de todos os meus esforços — fui buscando unidades policiais do Bairro Adryana até o West Shopping, na ilusão de que um acionamento por rádio pudesse acelerar a chegada da ambulância —, esse transporte nunca chegou.
Porém, verdade seja dita, não tinha muita esperança… mamãe já se entregara, desistira há muitos anos e seu interesse pela vida não era perda recente. Veio recusando sistematicamente todas as atividades que propusemos: do começo já não quis a fisioterapia nem a pintura de telas, mas na sequência nem o esforço da cama para a cadeira de rodas quis mais fazer… sugeríamos banhos de sol, mas nem ao banheiro e tomar seu próprio banho se forçava, recaindo todo esse esforço hercúleo sobre minha irmã, a pequena Gesilda, sozinha.
Eu, filho homem, não fui capaz de lidar com o constrangimento das rotinas higiênicas de minha mãe, mas me empenhei, o tempo inteiro que pude, a todo o tipo de apoio possível: meu pai já não morava a eras conosco, meu irmão morrera assassinado em 1991 e, emancipado aos 16 anos quando ingressei na Força Aérea, restou eu como “arrimo de família” desde meus 18 anos.
Mamãe era minha dependente e eu levei isso muito a sério por toda a sua existência, mas um acidente em 2014 trouxe um impedimento: na cirurgia da fratura exposta, minha destra inicialmente perdeu a motricidade quando seu nervo radial foi pinçado e passei meses até conseguir recuperar os movimentos, mas a capacidade de carga… essa ficou tão comprometida que nem meus filhos consigo carregar no colo do lado direito, quanto mais sustentar os cento e poucos quilos de minha mãe numa transferência entre cama e cadeira de rodas!
LIÇÃO
Aliás, uma das lições mais importantes que aprendi em toda a minha vida aconteceu justamente durante a recuperação da minha “mão boba”: após meses de tipóia e já começando a aprender a escrever com a esquerda, um certo dia, na fisioterapia, uma dor lancinante brotou em meu antebraço e, atônito, gritei pedindo que parasse o exercício por pensar que o osso iria romper a pele e ficar exposto novamente, mas a sábia doutora me tranquilizou com a lição mais importante que compartilho aqui:
— Se está doendo é porque está reagindo:
se estivesse morto e sem esperanças, não sentiria mais dor!
E, realmente, daquele momento crucial em diante foi iniciado um processo de convalescença praticamente miraculoso: primeiro meu polegar conseguiu fazer pequenos movimentos, que ficaram maiores até que a mão inteira recuperou a função motora… e é com ela que estou digitando, normalmente, tudo isso!
Fiquei tão animado e logo vi que aquele também era um caminho possível para minha mãe, que chegava a berrar reclamando da dor em suas sessões de fisioterapia. E nós, filhos amorosos, preocupados e protetores, pedíamos que nossa querida amiga Elaine, profissional da área, imediatamente parasse… e se sinto alguma culpa hoje, talvez seja a de nunca tê-la impelido a suportar a dor enquanto era tempo, enquanto tínhamos recursos para custear as sessões, enquanto a estrutura corporal dela não havia se atrofiado de forma tão generalizada.
Minha empolgação desvaneceu e constatei que, mesmo ainda tendo alguma capacidade, minha mãe deliberadamente preferia ser totalmente auxiliada a realizar coisas que, com algum esforço, poderia executar por si própria: na cabeça dela essa dependência completa, sem considerar o desgaste extremo de quem a auxiliava, era tanto uma demonstração de carinho quanto uma obrigação… e, creiam, ela até realmente se ofendia quando falávamos para que se esforçasse um pouco!
Será que se ela tivesse topado se esforçar… ainda estaria por um pouco mais de tempo conosco?
“Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.”
(Eclesiastes 9:10)
Hoje só me resta a recordação do quadro: ela deitada na cama e, sem noção de espaço, pedindo para que eu (sem força no braço) a ajeitasse de um jeito, mas cinco minutos depois já queria de outro…
Eu pegava em sua mão, levava até as grades da cama e dizia:
— Mãe, a senhora está deitada e não corre risco algum de nada. Então segura aqui na grade e vai se ajeitando devagarzinho, pois Zilda está muito ocupada e eu tenho que ir embora.
Ela ficava zangada e eu fazia que tinha saído, mas ficava escondido olhando ela ir se ajeitando até conseguir encontrar, sozinha uma posição de onde não reclamava mais… aí eu aparecia, falava qualquer coisa e ficava tudo bem.
Por favor, não me condenem, pois esse era o único jeito onde conseguia que ela fizesse algum mínimo esforço físico…
Se de quando ela ainda estava entre nós já ficava emocionado ao me deparar com qualquer idoso se esforçando, caminhando (mesmo que lentamente), agora passei a pedir a Deus que recompense aquela atividade com o prolongamento da vida… e é por isso que eu não paro!
ETERNAMENTE INSTANTÂNEO
A atendente ficou sem compreender direito nossa solicitação por um crucifixo vazio, mas foi solícita ao remover aquela imagem onde estava um corpo preso à cruz… e a capela ficou sem nenhum ícone religioso até o final.
Será que não existe crucifixo sem bonequinho cadáver?
Aliás, essa questão religiosa é totalmente estranha quando as pessoas não estão prontas para respeitar as convicções alheias: eu, que creio em Deus e Cristo gloriosamente ressurreto, deixei de ficar assediando pessoas a crer nas mesmas coisas que eu desde que entendi que não é meu papel convencer as pessoas do pecado, da justiça e do juízo! Vivo de forma que minhas ações sejam meus testemunho e pregação… no máximo acabo transcrevendo uma ou outra passagem bíblica (isso porque a fé genuína só pode vir através da palavra de Deus), porém não tenho mais paciência para entrar em contenda com ninguém e espero ser compreendido em minha resolução de não me curvar perante nenhum outro deus… nem para ser simpático: a isenção é meu respeito pela pessoa, pois há quem não professe a mesma fé que eu e se comporte com muito mais dignidade do que alguns cachorros e cadelas que se apresentam como “irmãos”!
Enfim, no velório da minha mãe teve gente querendo trazer padre para rezar ao lado do corpo, gente querendo distribuir revistinha dos testemunhas de Jeová… e é nessas horas que o abalo da emoção pode levar quem não tem conhecimento nem convicção na própria fé a pular no discurso que pareça mais afetivamente acolhedor: lembro perfeitamente de que, quando meu irmão morreu (um ano após o estrondoso lançamento de “Ghost”), ganhei e li o evangelho de Kardec de cabo a rabo!
Uma nota intrigante é que entre os dias 10 e 18 de novembro, com minha mãe ainda viva, por diversas noites eu sonhei que ainda tinha força nos braços e a conduzia numa cadeira de rodas até as portas de um tipo de “hospital-castelo” muito branco e iluminado: ao mesmo tempo em que sorria, ela dizia estar insegura de entrar ali… e, não sei porque, eu sabia que ali ela voltaria a andar… que ela voltaria a ser a Nair minha mãe serva de Deus que me ensinou muito de tudo o que sou!
Na terça-feira, dia 19 de novembro de 2019, assim que saí de uma consulta médica no HAAF, fui direto até sua casa e, sem muitas explicações nem considerar que dormia por causa de um calmante, segurei suas mãos e fui falando:
“Mãe, a senhora ainda está aí, né? Eu sei que a senhora está me ouvindo e eu preciso te falar do sonho que tive: a senhora não precisa ter medo de nada, pois há um lugar muito lindo onde você vai ser curada de tudo!”
Ela reagiu e eu continuei, subitamente revestido com uma certeza totalmente incomum, senão imprópria:
“Mãe, logo a senhora vai estar diante de Deus e vai poder contemplá-lO face a face! Eu não vou fazer discurso diante de cadáver em caixão porque estou fazendo pra você aqui e agora: eu te amo, minha mãe!
A despeito de ter ficado decepcionado e zangado quando foi desistindo de fazer as coisas e de ter tentado desesperadamente te fazer reagir, eu te amo porque a senhora sempre foi minha melhor amiga e sempre quis o melhor pra mim.
Pode descansar que hoje eu sou o pai dos seus netos e estou tentando cuidar deles e da minha esposa da melhor forma possível… e da minha irmã também: quando a senhora estiver diante de Deus, por favor fale com Ele que eu tento ser honrado e exemplar… e que mesmo falhando eu O amo e respeito mais do que tudo… e que espero um dia ter a honra de completar o “trato” que tenho com Ele.
Eu sei que Ele ouve as orações, mas eu nunca tive a perspectiva de mandar um recado tão pessoal… então a senhora pode descansar, pode ficar em paz que sua missão foi cumprida, que sua luta já terminou e que eu vou ficar aqui e fazer o melhor possível para honrar a sua memória.
Eu te amo, minha mãe.”
Minha irmã, que ouviu tudo, se espantou e curiosamente contou que havia uma semana, lá na casa dela, minha mãe vinha tendo o sono conturbado e chamando pelo meu nome durante a madrugada.
Não quis ficar pensando nisso e nem ali: me virei, saí… e tenho pra mim que essa foi a última vez que falei, de fato, com minha mãe.
No domingo, dia 24 de novembro de 2019, após ter tentado de todas as formas acionar uma ambulância, retornei até a casa de minha irmã e sentei na varanda para tomar uma xícara de café e um pão com manteiga, pois desde as 6:15 estava envolvido nessa tarefa e, gastroplastizado, poderia passar mal com o estômago vazio.
Não me perguntem a razão, mas não me senti à vontade para entrar na sala e, como normalmente fazia, comer ao lado de minha mãe.
Pouco antes das 8 comecei a sentir um frio totalmente incomum e, ainda na expectativa da chegada do SAMU, decidi ir até minha casa para pegar um casaco e deixar a esposa com as crianças na igreja: foi o tempo de parar o carro em meu portão e minha irmã ligar dizendo…
MAMÃE PARTIU
Lembro com perfeição do sargento Cabral falando, numa aula de regulamento da 1ª série da Escola de especialistas de Aeronáutica, que quando nos tornamos militares estamos garantindo a tranquilidade de nossas esposas, filhas e mães até o dia da morte delas!
Como aquele momento ficou gravado em minha memória: da sala onde a aula foi dada até a entonação e a expressão facial de meu, então, sargenteante.
Foi disso que me lembrei quando a FHE POUPEX se recusou — legalmente e com base numa sórdida manobra administrativa recentemente implementada — a prestar o apoio esperado: a FAB vai me amparar nesse momento doloroso com o auxílio-funeral!
Não sei se algum leitor teria essa capacidade, mas com o corpo de minha mãe na sala de casa eu não tive sangue frio para sair de funerária em funerária fazendo cotação de remoção e caixão: ligamos logo para o local onde temos jazigo e ativamos o serviço completo, da remoção até a lápide.
Tenho de agradecer à Primeira Igreja Batista de Campo Grande, que viabilizou o médico legista que emitiu o atestado de óbito.
Tenho que agradecer à minha prima, enfermeira Louise, que foi até a casa do legista para ele retificar um erro de preenchimento ocorrido na leitura equivocada de um documento… e através dessa correção possibilitar a remoção do corpo.
Tenho que agradecer a todos que se fizeram presentes e demonstraram seus sentimentos, tanto em casa quanto no cemitério, mas talvez seja necessário contar que muito prezei por seus abraços emocionados, mas, surdo, nada pude compreender quando falavam baixo sem que eu pudesse visualizar suas bocas.
Enfim, às 15 o corpo foi removido; antes das 17 aquela cama de metal onde ela havia passado os últimos anos já estava fora de casa e em algum lugar desconhecido para nunca mais ser vista; antes das 20 todas aquelas roupas e panos que ela usava já estavam ensacados para doação ou qualquer destino que não perto de nós ou às nossas vistas.
Às 10 do dia 25 iniciou-se o velório e às 15:30h houve o sepultamento.
Quisera eu encerrar aqui esse relato, mas no dia 26 vi se abrir o maior abismo que já esteve sob meus pés: preocupado por ter estourado o limite de meu cartão de crédito, amanheci o dia 26 correndo até a Força Aérea com a documentação para poder solicitar o auxílio-funeral, mas a informação que recebi quase me fez desmaiar!
Sua mãe é sua dependente “AMHC” e tem um ano que a lei mudou: só tem direito a auxílio-funeral os dependentes “AMH”.
Em outras palavras: QUE SE DANE!!
Pela primeira vez na vida eu tive que pedir esmola e se não fosse a boa vontade de alguns irmãos de farda (e de uma amiga surda em particular) eu e minha família teríamos passado necessidade em dezembro de 2019!
Enfim, aqui encerro apenas esse episódio, porque a história continua e. modéstia à parte, é deveras interessante… porém realmente preciso muito de dinheiro e desde que fiquei surdo não têm surgido muitas oportunidades em eventos: talvez a próxima história seja a de como passei em primeiro lugar num concurso público e de como, provavelmente, mais uma vez meu vínculo com a Força Aérea venha prejudicar em minha luta para sair dessa condição financeira ridícula em que me encontro.
Sinto, sim, muitas saudades de minha mãe e, desesperado por não ter conseguido inspirá-la a resistir e enfrentar as dores e desafios, prossigo eu próprio tentando inspirar e levantar outras pessoas, pois ao fazer isso eu próprio também sou inspirado.
Muito obrigado por ter lido e seus comentários, reações e compartilhamentos podem me ajudar a conseguir algum recurso a mais… quem sabe?
É, meu amigo, fico emocinado ao ler esse relato. Sei de suas dificuldades e da sua luta nos últimos anos. Vc sempre foi um guerreiro, uma das pessoas mais corretas q conheci na vida. Às vezes, realmente é muito difícil encontrar explicações para tudo q acontece em nossas vidas. Melhor é seguir em frente lutando e acreditando nos desígnios de Deus. Sinto muito sua falta. Sempre gostei de conversar contigo. Sei q atualmente é difícil, mas há várias formas de “conversarmos”. Espero que fique bem ao lado de sua família linda. Grande abraço, meu amigo!!!